Sunday, August 20, 2006

composição afetiva em três movimentos

Camila do Valle
1-

A parte central de um poema
Diz:
O amor é uma mulher que passeia,
Sem membros e bela em excesso.

O amor, o amor.

Na parte central de um poema
Expressam-se cinzas
(“Você tem um cigarro antiaborrecimento? Não fumo há anos.
Mas de repente me sobreveio a necessidade”)

Na parte central alcança o poema
Seu clímax provisório
(O poema é masculino
e põe a descoberto um re-recitador
O re-recitador é o eu-lírico como um chouriço no prato)
Algo nunca dito
É expresso e apagado
Como um cigarro (pérolas aos porcos)

Você crê no eu-lírico? (Marque com uma cruz)
a- completamente
b- um pouco
c- quase nada
d- para nada

O amor, o amor
É uma senhorita numa torre, que pode
Caminhar pelo ar, como já foi dito, sem membros
Mas bela em excesso

Assim termina a parte central de um poema:

Amo os começos de teus lábios
Pronuncia-me, mas
Não deixes que sejamos o centro.

Amo os começos do teu cabelo
Enreda-me, mas
Não deixes que sejamos o centro

Amo os começos de tua pele
Destroça-me, mas
Não deixe que sejamos o centro.



2- Este poema que li é de um alemão chamado Tom Schulz
e foi traduzido ao castelhano pela escritora argentina Cecília Pavón
e retraduzido por mim ao português
Temos todos trinta e poucos anos.
Suponho.
Mas como tenho quase certeza de que vocês não o saberiam -
Tom Schulz não é assim tão famoso -
Eu poderia tê-lo traduzido
Modificando mais um pouquinho, para não sentir remorso,
E dizer que era meu.
Eu queria ter escrito este texto.
Como definir um roubo literário ou
uma impropriedade na tradução poética
ou o que é um autor não são questões que mobilizem minha atenção.
E não vou fazer isso porque acredito na rede
Minha religião é a rede
Meu amor é em rede
Acredito que estamos todos aí
Basta encontrar as mãos certas e dar-nos as mãos
Tudo é uma questão de dar-nos as mãos
Os padres sabem disso:
há um momento da missa em que eles dizem que todos devem se dar as mãos: cumprimentem-se, dêem-se as mãos:
cumprimentem-se, dêem-se as mãos:
cumprimentem-se, dêem-se as mãos:
a paz de Cristo:
dar-nos as mãos: os padres são sabidinhos.
Não beijam a mão de qualquer um porque eles sabem muito bem do que querem se salvar.
Nós queremos outras coisas.
E para isso também temos que dar-nos as mãos.
Pois é tudo uma questão de escolher a mão certa
Sim: a paranóia existe
E existe a mão certa e a errada
Porque a errada pode conduzir você para o buraco
E você, cheio de fé na rede, não vai nem perceber
E você nunca é só você: é você e mais alguns,
Diretamente para o buraco.
Mas este poema que li é de Tom Schulz.
E vocês podem, sim, dar as mãos uns aos outros e chegar até ele.
E noutros eles.


3- Do amor
vontade de vomitar o y, o x e mais um monte de outras histórias que sei que são adjacências desse enjôo:
O marido e o amante.
Vomitados juntos.
Quero agora que o amor seja um desencontro que não me impeça de dançar.
Não, não quero que sejamos o centro
Não me proponha esse tipo de amor porque é perda de tempo
Não, não deixe que sejamos o centro
Quero que estejamos em rede,
Que quando eu toque outro corpo, eu esteja, inequivocamente, tocando também o seu,
em rede,
Anti-aids total
Anti paranóia
Anti espelho plano
Anti centro
Caleidoscópio de amores.
Por favor, só peço um amor que não queira ser o centro.
Que queira se espalhar, fundar cidades.
Deixar-me livre
Libertar-se
Dançar comigo, fazer uns filhos,
E rir da impossibilidade de fundar instituições alegres
E rir da incessante busca
E levar a sério a busca
A eventualidade
E a minha maternidade sexual
Séria, divertida, livre e desejante.
Não me peça para ser só sua.
Leia outro texto.
Escreva outra coisa.
E eu estarei ao seu lado.
Tão leal quanto o cavalo de Alexandre nas batalhas.
Eu cuidadei dos seus ciúmes.
Darei a você outros filhos,
Outras noites de amor,
Outras risadas e até outras lágrimas.
Mas definitivamente não me peça para caber nesse lugar tão apertado onde nem você cabe,
Onde nem você quer ficar.
Não me queira prisioneira do meu desejo
Antes me queira libertadora
Do seu e do meu desejo
Não me queira nem só mulher nem só homem
Porque assim eu não serei feliz
Porque assim você não será feliz
Porque assim ninguém é feliz
Você não vê?
Por favor, não deixe que sejamos o centro
E não deixe que fiquemos de lado.
Não há um “ao lado do mundo”.
Façamos uma polifonia com todas as vozes conhecidas.
Descubramos outras
Contemos as novidades uns aos outros
Vamos construir uma rede onde todos possam se sentir amados
Veja quão sexual é para toda a humanidade a minha barriga de grávida.
Carrego a humanidade inteira dentro de mim
E você quer que sejamos o centro?
Não creio.
Você também quer a mesma liberdade.
Você também quer perder o medo.
Você também quer uma rede protetora nos momentos de angústia.
Uma mãe que cuide eternamente da humanidade que você carrega.
Você, eu e todos nós precisamos dessa rede, dessa mãe e que não sejamos o centro.
(Em alguns momentos eu preciso é que alguém me ame mais do que eu mesma me amo. Você também? Sim, todos nós já sabíamos. Esse segredo é público. Uma solução? Que nos amemos em rede e que não sejamos o centro.)

2 Comments:

Blogger paredes pablo said...

quiero leer bien el portugués, resulta casi una adivinanza para mí, sin embargo, música. Hace unos días estuve releyendo el libro que me regalaste en salida al mar, creo que cada vez puedo adivinar más.


besos

Pablo Paredes
Chile

6:42 AM  
Blogger camila do valle said...

camila: la adivinanza es una arte poética. y palomas y palomitas ayudan.

7:51 AM  

Post a Comment

<< Home